O Globo
Ex-‘Boca do lixo’, filme entra em cartaz dois anos após primeiras exibições. ‘Não é um filme de violência na favela. Estamos falando de outro submundo.”, afirma diretor.
Embora jamais tenha frequentado os cinemas do Brasil, o filme nacional “Boca do lixo” vem encontrando – ainda que nem sempre voluntariamente – formas alternativas de chegar ao público. As primeiras exibições formais ocorreram em 2010, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio. Desde então, o longa, que narra a formatação da célebre área de prostituição paulistana, conheceu trajetória incomum. Foi vendido a uma distribuidora estrangeira, chegou então ao mercado europeu e finalmente regressou ao Brasil, através de sites de compartilhamentos e, segundo reportagem do jornal “O Globo”, das bancas de camelôs.
Houve tempo, aliás, para que a obra mudasse de nome e ganhasse um final diferente: agora, é apenas “Boca”, explica o diretor, Flavio Frederico, recentemente premiado do Cine PE, onde o filme passou com o tal novo desfecho. De acordo com o cineasta, já está agendada uma data para que a obra enfim se enquadre no esquema tradicional do circuito exibidor. “Em agosto ou setembro, ele estará nos cinemas do Brasil.”
A história contada pelo filme adapta a autobiografia de Hiroito de Moraes Joanides (1936-1992), homem que virou bandido após ter sido acusado de assassinar o pai – injustamente, alegava. Como era frequentador da zona de prostituição de São Paulo, por ali se estabeleceu nos anos 1950 e 60, tendo a polícia permanentemente em seu encalço. De ascendência grega, Hiroito recebeu o nome em homenagem a um imperador do Japão, Hirohito (1901-1989).
Flavio Frederico acredita que se trata de um assunto “com potencial” para atrair o interesse do espectador. “Está fazendo sucesso nos camelôs da zona norte do Rio porque é um filme brasileiro, meio policial, gangster, noir”, afirma, referindo-se ao “gênero” associado a produções que retratam detetives ou similares enredados em tramas sobre submundo, com direito àfemme fatale etc. O assunto “Tropa de elite” (2007) é levantado em seguida – e o diretor prefere afastar comparações que possam ir além da existência prévia no formato pirata. Argumenta que seu trabalho “tem tamanho muito menor” que o do filme dirigido por José Padilha e protagonizado por Wagner Moura.
“Eu sou produtor e realizador [de ‘Boca’]”, explica Frederico. “Como produtor, fiquei triste [com a aparição da versão pirata]. Como realizador, digo que não. Sabendo que ele faz sucesso, pô, que legal, fico feliz. Espero que isso não atrapalhe, mas ajude.”
Sobre o porquê do interesse antecipado, ele recorre uma vez mais ao tema do filme. “É um filme de um gênero que o povo gosta, o policial. E traz algumas novidades: por exemplo, não é um filme de violência na favela. Estamos falando de outro submundo, de um personagem que veio da classe media alta, e é de outra época. Imagino deva existir também a vontade de ver esse ator, o Daniel de Oliveira [intérprete de Hiroito]. Ele está transformado no filme.” Do elenco, fazem parte Milhem Cortaz e as atrizes Hermila Guedes e Leandra Leal.
A despeito de tais supostos atributos e do apelo, Frederico lembra-se de que demorou a conseguir uma distribuidora para “Boca”. Para ele, o trabalho não segue “a receita de bolo das distribuidoras” – “não é um filme modelo do cinema americano tradicional, feito para agradar o público”. Contribuiu também o fato de ser obra de um cineasta apenas em seu segundo longa de ficção: possíveis parceiros relutavam em firmar contrato com alguém “fora do mainstream”, conta o diretor, que achou antes um distribuidor internacional. Tanto é que, em 2011, “Boca” chegou a alguns países da Europa, via Universal Pictures.
“Nessas, aconteceu de o DVD ser lançado naquela região e ter vindo parar na mão dos caras que piratearam. Não foi uma cópia daqui.” Questionado se o filme passou antes nos cinemas europeus, Frederico afirma não ter certeza. “Não é uma relação muito fácil e transparente. Mas o contrato era [ir para] sala de cinema em digital e [depois] DVD e bluray.”
No Brasil, quem distribui “Boca” é a NOSSA Distribuidora, empresa criada no ano passado por sete produtoras do país, dentre elas Conspiração Filmes, O2 Filmes e Zazen Produções, de José Padilha. Representando a NOSSA, o distribuidor Marco Aurélio Marcondes diz que a existência das cópias ilegais do filme de Frederico “não altera a estratégia de distribuição, ao contrário”. “Creio que, se por um acaso nós viermos a ter o pirata comprovado, o que eu ainda não tenho, isso pode funcionar como mídia. Tenho uma visão muito liberal quanto à questão dos direitos, mas não aposto nisso [na pirataria], não gosto disso.” De acordo com Marcondes, “Boca” vai estrear “em 60 ou 80 salas”. Em 2008, “Tropa de elite” chegou a ocupar 321, informa o portal Filme B, que monitora o setor.
A mudança do nome de “Boca do lixo” faz parte desse esquema de lançamento, justifica Frederico. Em sessões de teste, ele observou que “do lixo” causava alguma rejeição. Além disso, havia o risco de o público imaginar que se trata de uma produção filiada à estética da Boca do Lixo, que décadas atrás servia de cenário a filmes eróticos. Por fim, ele menciona uma confusão aparentemente improvável: “O filme chegou até a ser convidado para uma mostra sobre resíduos sólidos, sobre lixo. Recebi um e-mail [com o convite] e pensei: ‘Devem estar achando que é filme [documentário] do Eduardo Coutinho’!”.