Por Josafá Santos*
Artigo aborda a polêmica sobre o fechamento dos bares em Vitória da Conquista.
Na noite de sexta feira, 15 de abril, enquanto o show de Zé Ramalho prometia, “discutia-se” na Câmara de Vereadores da cidade, certo projeto de lei que visaria (ou visará) o fechamento ou a regulamentação de bares e casas noturnas em Conquista, a exemplo do que já ocorre em Diadema, SP. O espírito deste projeto, segundo seu autor, o Sec. de Defesa Social daquela cidade, Arquimedes Andrade, materializaria a diminuição dos índices de violência em nossa urbe, fato notado naquela cidade, após a implantação da tal Lei. Autoridades se fizeram presentes: As policias Civil e Militar, um promotor, alguns vereadores, dois representantes religiosos, (da igreja católica e das igrejas evangélicas), duas dúzias de cidadãos, dois ou três empresários da noite e, ao menos, um curioso.
No Projeto, aqui intitulado “A hora da família”, foi demonstrado que o fechamento, através de lei, dos bares na cidade de Diadema, reduziram os índices de violência por lá. Segundo lá se aplica, os cidadãos tem até às 23 hs para consumirem bebidas alcoólicas. Após tal horário somente o podem fazer em ambientes específicos, como clubes, hotéis, motéis, ou em seus lares. No tocante aos eventos noturnos, estes só podem se realizar após o horário limite (23 hs), sob uma licença especial, obedeçendo a certos critérios, como isolamento acústico, seguranças profissionalizados, etc, etc, etc. Mais: nesses ou naqueles ambientes, em qualquer horário que seja, se dá como proibida a venda de bebidas alcoólicas a menores de idade, adolescentes, crianças. Em Diadema, os resultados positivos logo se mostraram, segundo Andrade. Ao lado da aplicação desta, de certa forma, “Lei seca”, se implantaram na cidade paulista diversos projetos de cunho social, montados e ofertados pelo governo, focados no lazer, no esporte, na cultura, a fim de se ofertar aos jovens em formação, e à sociedade de um modo geral, outras opções de sociabilização, que não somente as mesas dos bares.
Ouvindo a exposição do projeto, alguns fatos me chamaram a atenção. Vi na tal Lei, um inegável ar de supérflua, por um motivo muito simples: todos os pontos que supostamente embasam e formam o esqueleto do projeto… já existem. Vejamos: Vender bebidas alcoólicas a menores de idade ou a crianças (em qualquer local ou horário), já é tipificado como crime, no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, no artigo 243. Por sinal, é crime vender ou servir bebidas alcoólicas tanto a menores de idade, como a doentes mentais e a cidadãos já notadamente bêbados, como consta no Código Penal, no art. 62. Ainda embasando o projeto, se buscou relacionar diretamente a ingestão de álcool ao aumento dos acidentes de transito. Indiscutível esse nexo causal, mas para se tratar desses casos, também já existe lei especifica, mais exatamente o artigo 306 do Código Brasileiro de Transito – CTB, que tipifica como crime a embriaguês ao volante, com penas rígidas quando o sinistro envolver vitimas graves ou fatais. Mais: Ao tratar como justificativa para a nova lei, usa-se o argumento do direito às famílias ao descanso, prejudicado pelos bares e shows. Tal preocupação também já consta em nosso Código Penal, no art. 42, a “Lei do Silêncio”. Nota: todas essas “novas idéias”, ou imposições, defendidas como novas no projeto “A hora da Família”, já existem ha mais de seis décadas, mais exatamente desde 1941, ano de publicação do nosso Código Penal.
Óbvio se vê que o necessário não é a criação de leis novas, mas simplesmente, a aplicação das leis já existentes. Até mesmo a gama de projetos sociais citados na “hora da família”, já se encontra em nossa Constituição, no art. 227, onde se lê: “É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Se nada de novo havia para ser dito, porque tanto se disse a respeito do que se mostrou? Tristemente o que se viu, além da exposição do óbvio, a Lei, foi o discurso de alguns, que não perderam a oportunidade de acusar o governo em gestão, pelos vários problemas sociais em curso, como se durante a gestão de seus partidos, a realidade social fosse positivamente diferente. A eterna luta entre o estar e o querer ser o poder…
Mas o que mais me chamou a atenção foi o teor subliminar dos discursos a favor do projeto. Buscou-se, quase de fato, se demonizar os profissionais das casas noturnas e, por tabela, os seus freqüentadores; por pouco não se excomungou coletivamente a quem, leviandade das leviandades, tenha o satânico hábito de sorver, pouco que seja, um copo de cerveja ou um cálice de vinho, os pecadores, mundanos ou infiéis que freqüentem um bar; chegou-se mesmo a se relacionar diretamente o ato de freqüentar-se as casas noturnas, os barzinhos, ao indesviável caminho das drogas, da prostituição, do delito social, do homicídio doloso. Eu, modesto e raro apreciador de vinhos e de alguns eventos noturnos, me senti um réu confesso, um quase criminoso. Havendo ali um delegado, um promotor e a policia militar, quase me entreguei para ser devidamente preso. Desnecessário dizer que todos os defensores do projeto, que à tribuna subiram, se deram como exemplos morais, que não bebem, que também não fumam, que também não freqüentam bares, que também não…
O teor puritano, quase fundamentalista das falas, só fez justificar uma suspeita que passou pela minha cabeça, antes que eu adentrasse as portas da Câmara de Vereadores: inegável que há em andamento, que caminha a largos passos, um lobby, um irmanamento (no mal sentido da palavra) entre alguns setores leigos (grupos religiosos) e alguns braços do Estado, através de certos ocupantes dos poderes legais, “representantes” do povo. Isto, por sinal, essa íntima relação, essa troca ou defesa de interesses entre o poder Leigo e o Estado é, por Lei, proibida. Desde 1890, na primeira Constituição Republicana do Brasil, no art. 119, se deu como extinta, em nossa nação, a união entre o Estado e a Igreja, sendo a partir de então, o Brasil identificado legal e oficialmente como Estado laico, sem direcionamento ou vínculo religioso. Reforça este conceito a última constituição, de 1988, no art. 19, onde “se veta, se proíbe, ao Estado, estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança…”
Os livros de História bem nos contam do resultado desastroso dos Estados Teocráticos, dos governos firmados sob a influencia ou sob a condução de alguma religião ou igreja. Da Idade Média (com as suas Cruzadas e a Santa Inquisição a perseguir, prender, torturar e matar os milhares de hereges) aos governos puritanos da América do Norte (com as centenas de mulheres queimadas vivas nas fogueiras, acusadas de bruxaria), sem falar nas nações fundamentalistas islâmicas atuais, (com suas execuções por apedrejamento, em praça pública, aos que não obedeçam ao Alcorão), o que se viu foi muito do inferno e pouco do paraíso, sempre que religião e poder se aliançaram.
O que vi e ouvi, naquela fria noite de sexta feira, realmente me preocupou: Vi grupos religiosos se manifestando, fazendo uso (mesmo que indiretamente) do brasão do Estado; vi representantes legais do Estado falando sob a cruz da igreja. Saí da Câmara pensando no show de Zé Ramalho que, àquela altura, bem deveria estar executando uma de suas mais conhecidas canções, seguindo assim: “…vocês que fazem parte dessa massa, que passa nos projetos do futuro…”
*Josafá Santos . Historiador / Esp. em Educação
Vit. Da Conquista – 16.04.2011